quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Poemas de céu


Roseana Murray é, para mim, uma das poetisas maiores da atualidade. A delicadeza com que usa as palavras, cria as rimas, inventa metáforas é algo que dói dentro da gente de tanta beleza que há.
Seus livros, na categoria infanto-juvenil, inquietam aos adultos, com certeza. E às crianças e jovens vale a pena mostrar seu trabalho, ainda que a compreensão não chegue por completo... Com a poesia, às vezes é assim mesmo. É preciso tempo e muitas releituras para que o que o coração sentiu informe ao pensamento da mente. 
Como diz Mario Quintana: "O bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente... E não a gente a ele!"

“Poemas do céu” é mais uma obra sua que acabei de conhecer. Com poemas curtos, alguns com apenas quatro versos, a autora passeia por elementos celestes que povoam nossa imaginação, como estrela cadente, crepúsculo, extraterrestre, cometa... Vale a pena degustar cada um deles!

Um aperitivo:
“Buraco negro

Essa coisa esquisita
que às vezes
a gente sente,
como se tivesse
um pedaço faltando,
essa vontade que se tem
de não se sabe o quê,
esses abismos que nascem
repentinamente,
esses buracos
negros do céu
dentro da alma da gente.”

MURRAY, Roseana. Poemas de céu. São Paulo: Paulinas, 2009

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

A dor azul


A dor azul
Adriana Falcão[i]


A menina sentia uma dor azul, todos os dias, ali pelas cinco horas da tarde.
Não era uma dor grandona de puxar o choro pra fora. Era só uma dorzinha. Mas era bem azulzona.
Achavam que era maluquice. “Dor não tem cor!”
Mas como a dor azul não passava, começaram a achar que ela doía mesmo.
Levaram a menina para todos os médicos do mundo, fizeram todos os exames que existiam, e ninguém descobriu o que era aquilo. Procuraram então um psicólogo e é claro que ela achou que aquilo era psicológico.
A dor azul não queria nem saber. Ia e vinha. Sempre na mesma hora.
As horas foram passando e o azul da dor continuava colorindo as tardes da menina. Só as tardes.
De manhã, ela sentia uma saudade lilás. E à noite um desejo prata ela não sabia de quê.
A menina cresceu. E um dia conheceu um rapaz que sentia uma vontade violeta de espirrar nas manhãs nubladas.
Eles se gostaram, um gostar laranja que foi se avermelhando sem parar, até que se casaram, numa noite dourada de alegria, cheia de luzinhas rosas de paixão.
Um ano depois, numa madrugada de cheiros cor-de-rosa, ela teve uma filhinha. E nunca ela tinha sentido um carinho tão verde em toda sua vida.
A filha da menina, quando cresceu, herdou a vontade violeta de espirrar do pai e, da mãe, o desejo prateado.
A dor azul nunca mais apareceu.
E a menina, que já era uma mulher, descobriu que o nome da dor azul, como está no dicionário, é desassossego.
E que esse desassossego queria dizer, mais ou menos, em palavras de adulto: “Como será minha vida daqui pra frente?”.


[i] FALCÃO, Adriana. Sete histórias para contar. São Paulo: Moderna, 2008

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Sete histórias para contar


Sete histórias para contar
Texto de Adriana Falcão
Ilustrações de Ana Terra
Editora Moderna (Salamandra), 2008


Sete histórias curtas sobre o universo infantil: ansiedade, os sentimentos não nomeados, o papel dos pais/adultos, o amigo imaginário, até mesmo os piolhos.

Um texto compreensível à criança, mas que toca o adulto pela beleza das palavras e pela profundidade como os tema são abordados, levando uma gostosa nostalgia sobre os tempos de criança.

Ilustrações criadas com material diversificado, numa interessante brincadeira com a imaginação, valem a pena serem lidas também.

Destaque para “A menina que só pensava no daqui a pouco” (meu predileto), sobre a ansiedade da criança que deseja o instante seguinte e acaba por não aproveitar o atual, vivenciando na sua infantil realidade o ritmo frenético do mundo. Ao adulto, um “Carpe Diem”. Quase no final do texto, a lição aprendida pela menina: “Só sabia que os ‘daqui a pouco’ são muitos e chegam muito rápido. Um atrás do outro. Os daqui a pouco não acabam. Mas os ‘agora’ vão embora a cada daqui a pouco que chega.”

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

A Princesa que Escolhia


A Princesa que Escolhia
Texto de Ana Maria Machado
Ilustrações de Mariana Massarani
Editora Objetiva, 2012

Um livro sobre princesas. Com rei, rainha, reino, princesa. Com enredo de contos de fadas, com obediências/desobediências, castigos/prêmios. E também com serviçais, torre, fila de príncipes pretendentes pela mão da princesa.
Mas é um livro sobre ser gente, sobre tornar-se pessoa. Sobre descobrir novos mundos – geográficos, físicos, espaciais. E novos mundos de conhecimento, cultura, pessoas.
É um livro sobre autonomia. Sobre poder escolher e não ser obrigado a dar a resposta que o outro deseja ouvir. Como disse a princesa à sua mãe: “Só quando a gente pode dizer não é que tem graça dizer sim.” (p.16)
Se fala de escolhas, é um livro sobre a vida. Sobre as possibilidades de ser feliz. Sobre a descoberta de si mesmo até a descoberta do outro. Se isso leva ao “felizes para sempre”? Impossível saber. Mas, com certeza, ao “felizes diariamente”, porque um e outro “se escolhem a cada dia” (p. 38).
Belo texto, com intertextualidade com contos maravilhosos clássicos e uma belíssima e criativa ilustração.

Livro dentro da gente


“Quando Lucia Pelãez era pequena, leu um romance escondida. Leu aos pedaços, noite após noite, ocultando o livro debaixo do travesseiro. Lucia tinha roubado o romance da biblioteca de cedro onde seu tio guardava os livros preferidos.
Muito caminhou Lucia, enquanto
passavam-se os anos. Na busca de fantasmas caminhou pelos rochedos sobre o rio Antióquia, e na busca de gente caminhou pelas ruas das cidades violentas.
Muito caminhou Lucia, e ao longo de seu caminhar ia sempre acompanhada pelos ecos daquelas vozes distantes que ela tinha escutado, com seus olhos, na infância. Lucia não tornou a ler aquele livro. Não o reconheceria mais. O livro cresceu tanto dentro dela que agora é outro, agora é dela.”

Eduardo Galeano, em "O livro dos abraços"