domingo, 25 de novembro de 2012

O Evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago


Há poucos meses li “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, de José Saramago. Hoje, ainda, sinto-me impactada por essa leitura. Mas diria que é um dos melhores livros que já li. Diria mais: marcou minha vida.
O texto causa muitos sentimentos contraditórios e até mesmo confusos. Conheço o Evangelho, por leituras com os mais diversos grupos, em igrejas distintas, em homilias católicas e sermões protestantes, desde a minha infância, passando por toda a minha adolescência, até os dias atuais. Sou cristã e tive a experiência de leitura da Bíblia. Por causa disso, reconheci as passagens a que o livro faz referência (do começo ao fim, dentro de uma narrativa inédita). Confesso que muitas vezes senti-me estranha, diferente. O que lia parecia heresia. Paradoxalmente, a maestria da construção textual é tamanha e a beleza de certos momentos é tão grande que eu não podia deixar de admirar o autor. E pensar: é doido varrido, mas é brilhante!
Esse é daqueles livros que se começa a ler e que não se consegue parar. A narrativa é interessante e desejamos saber o que mais vai acontecer, aonde tudo aquilo vai chegar - especialmente para quem tem a referência bíblica. O pensamento é: como o narrador vai agir no momento do acontecimento tal? 
E é tão instigante que, ao mesmo tempo que queremos chegar ao final, não desejamos que o livro acabe... Deixar de ter a companhia daquele narrador tão sagaz, às vezes tão duro, tão sarcástico, tão mordaz e tão sensível... Que livro!

Não sei se recomendo a obra. No entanto, às vezes penso que todas as pessoas deveriam conhecê-la. A leitura é existencialmente dolorosa. Profunda. Reflexiva.
Dizer que o livro abalou minha fé seria um exagero Afinal, que fé seria essa?
Mas é claro que mexeu profundamente com meu modo de enxergar a fé cristã e como ela se construiu. É um livro desafiante, com certeza!
Apenas como aperitivo, dois pequenos trechos criados por esse autor ímpar, em seu modo singular de escrever:
“Ora, sem que pudesse perceber-se o porquê, 
porém as coisas não levam sempre, 
conjuntamente, a sua própria explicação (...)”.

“(...) pois o deserto não é aquilo que vulgarmente se pensa, 
deserto é tudo quanto esteja ausente dos homens, 
ainda que não devamos esquecer que não é raro encontrar 
desertos e securas mortais em meio a multidões.”



domingo, 16 de setembro de 2012

Marcelo, marmelo, martelo e outras histórias


Marcelo, marmelo, martelo e outras histórias
Ruth Rocha
Editora Salamandra
Ilustrações de Mariana Massarani

Quando falamos em clássicos, geralmente deixamos de lado a literatura infantil. Mas há clássicos para as crianças também, com certeza. E (re)encontrá-los é importante para não deixar que se percam – clássicos devem ser ETERNOS!
Tenho ido em busca de livros que encheram a minha infância de alegria e prazer, cuja lembrança me emocionam ainda hoje. Quero ler esses livros para meus filhos e fazê-los conhecer esses clássicos que, a despeito de terem sido escritos há tanto tempo, continuam atuais.
Uma das obras que incluo nessa categoria é “Marcelo, marmelo, martelo”, de Ruth Rocha. O livro se inicia com o texto homônimo e depois traz mais duas histórias – “Teresinha e Gabriela” e “O dono da bola”. As três histórias revelam bem o universo infantil, com suas descobertas, encontros e conflitos. É uma graça!
Encontrei o livro na livraria esse final de semana, de cara nova, em edição recente, com ilustrações divertidas de Mariana Massarani. Adorei!
O primeiro texto, confesso, é o meu preferido. A história do menino que não entende a arbitrariedade do signo lingüístico e deseja nomear autonomamente as coisas é muito interessante. Trata-se de uma indagação humana diante das convenções. Dá uma boa aula de Filosofia da Linguagem – afinal, um bom livro infantil é que aquele que agrada também aos adultos.
Um gostinho:
“E Marcelo continuou pensando:
‘Pois é, está tudo errado! Bola é bola, porque é redonda. Mas bolo nem sempre é redondo. E por que será que a bola não é a mulher do bolo? E bule? E belo? E bala? Eu acho que as coisas deviam ter nome mais apropriado. Cadeira, por exemplo. Devia chamar sentador, não cadeira, que não quer dizer nada. E travesseiro? Devia chamar cabeceiro, lógico! Também, agora, eu só vou falar assim.’”

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

A queda – As memórias de um pai em 424 passos


“A queda – As memórias de um pai em 424 passos”, Diogo Mainardi - Editora Record, 2012

No final de semana, li o texto de Lya Luft, na revista Veja, sobre o novo livro de Diogo Mainardi. Não gosto dele, por questões políticas. Seu humor seco e irônico me irritam.
O texto de Lya Luft, porém, me aguçou a curiosidade de ler o livro que, segundo a ela, a emocionou profundamente.
Hoje, dentro de uma livraria, tendo de aguardar por meia hora uma pessoa com quem eu havia marcado encontro, resolvi pedir o livro. Curiosa, comecei a lê-lo. Quando a pessoa chegou, eu estava na página 41 e decidida a ler até o final. Comprei o livro.

Trata-se de uma narrativa autobiográfica sobre seu filho mais velho, nascido no ano 2000, que teve paralisia cerebral, em decorrência de seguidos erros médicos no seu parto. Essa paralisia deixou o menino Tito sem falar, andar e mover-se nos primeiros anos de sua infância. E mudou a vida de seus pais.
O tom do livro é o mesmo humor seco e irônico de sempre. Como sempre também, a história é cheia de referências culturais importantes sobre Arte, com destaque especial para as obras arquitetônicas de Veneza, local onde Tito nasceu.
Em pouca coisa parecido com um romance, o livro se divide em 424 pequenos capítulos, alguns dos quais com apenas duas linhas. O número se refere à quantidade de passos que Tito é capaz de dar sem cair.
Por causa das constates quedas, que fazem parte de sua vida, desde a queda maior, quando foi feito o primeiro procedimento errado no seu nascimento, o título é “A queda”.

Mas a queda não é só de Tito. Que, pelo conta a história, acha graça dos próprios tombos.
A queda principal, nos conta Diogo, foi a dele mesmo. Queda do lugar onde estava até a chegada de seu primeiro filho. Na sua própria voz: “Eu sou a formiga de Tito. Suas quedas recordam-me permanentemente da precariedade e da transitoriedade de tudo o que eu tentei construir.”
Pequenas reflexões como essa estão presentes em vários momentos do livro. São duras pela realidade que exprimem. Mas de grande sensibilidade, na voz de um pai que ama seu filho e que lhe quer todo o bem.

“Quando vi Tito na incubadora, no dia de seu nascimento, compreendi que o amaria e o acudiria para sempre.
De lá para cá, nada mudou.
Eu o amarei para sempre. Eu o acudirei para sempre.”

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Poemas de céu


Roseana Murray é, para mim, uma das poetisas maiores da atualidade. A delicadeza com que usa as palavras, cria as rimas, inventa metáforas é algo que dói dentro da gente de tanta beleza que há.
Seus livros, na categoria infanto-juvenil, inquietam aos adultos, com certeza. E às crianças e jovens vale a pena mostrar seu trabalho, ainda que a compreensão não chegue por completo... Com a poesia, às vezes é assim mesmo. É preciso tempo e muitas releituras para que o que o coração sentiu informe ao pensamento da mente. 
Como diz Mario Quintana: "O bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente... E não a gente a ele!"

“Poemas do céu” é mais uma obra sua que acabei de conhecer. Com poemas curtos, alguns com apenas quatro versos, a autora passeia por elementos celestes que povoam nossa imaginação, como estrela cadente, crepúsculo, extraterrestre, cometa... Vale a pena degustar cada um deles!

Um aperitivo:
“Buraco negro

Essa coisa esquisita
que às vezes
a gente sente,
como se tivesse
um pedaço faltando,
essa vontade que se tem
de não se sabe o quê,
esses abismos que nascem
repentinamente,
esses buracos
negros do céu
dentro da alma da gente.”

MURRAY, Roseana. Poemas de céu. São Paulo: Paulinas, 2009

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

A dor azul


A dor azul
Adriana Falcão[i]


A menina sentia uma dor azul, todos os dias, ali pelas cinco horas da tarde.
Não era uma dor grandona de puxar o choro pra fora. Era só uma dorzinha. Mas era bem azulzona.
Achavam que era maluquice. “Dor não tem cor!”
Mas como a dor azul não passava, começaram a achar que ela doía mesmo.
Levaram a menina para todos os médicos do mundo, fizeram todos os exames que existiam, e ninguém descobriu o que era aquilo. Procuraram então um psicólogo e é claro que ela achou que aquilo era psicológico.
A dor azul não queria nem saber. Ia e vinha. Sempre na mesma hora.
As horas foram passando e o azul da dor continuava colorindo as tardes da menina. Só as tardes.
De manhã, ela sentia uma saudade lilás. E à noite um desejo prata ela não sabia de quê.
A menina cresceu. E um dia conheceu um rapaz que sentia uma vontade violeta de espirrar nas manhãs nubladas.
Eles se gostaram, um gostar laranja que foi se avermelhando sem parar, até que se casaram, numa noite dourada de alegria, cheia de luzinhas rosas de paixão.
Um ano depois, numa madrugada de cheiros cor-de-rosa, ela teve uma filhinha. E nunca ela tinha sentido um carinho tão verde em toda sua vida.
A filha da menina, quando cresceu, herdou a vontade violeta de espirrar do pai e, da mãe, o desejo prateado.
A dor azul nunca mais apareceu.
E a menina, que já era uma mulher, descobriu que o nome da dor azul, como está no dicionário, é desassossego.
E que esse desassossego queria dizer, mais ou menos, em palavras de adulto: “Como será minha vida daqui pra frente?”.


[i] FALCÃO, Adriana. Sete histórias para contar. São Paulo: Moderna, 2008

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Sete histórias para contar


Sete histórias para contar
Texto de Adriana Falcão
Ilustrações de Ana Terra
Editora Moderna (Salamandra), 2008


Sete histórias curtas sobre o universo infantil: ansiedade, os sentimentos não nomeados, o papel dos pais/adultos, o amigo imaginário, até mesmo os piolhos.

Um texto compreensível à criança, mas que toca o adulto pela beleza das palavras e pela profundidade como os tema são abordados, levando uma gostosa nostalgia sobre os tempos de criança.

Ilustrações criadas com material diversificado, numa interessante brincadeira com a imaginação, valem a pena serem lidas também.

Destaque para “A menina que só pensava no daqui a pouco” (meu predileto), sobre a ansiedade da criança que deseja o instante seguinte e acaba por não aproveitar o atual, vivenciando na sua infantil realidade o ritmo frenético do mundo. Ao adulto, um “Carpe Diem”. Quase no final do texto, a lição aprendida pela menina: “Só sabia que os ‘daqui a pouco’ são muitos e chegam muito rápido. Um atrás do outro. Os daqui a pouco não acabam. Mas os ‘agora’ vão embora a cada daqui a pouco que chega.”

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

A Princesa que Escolhia


A Princesa que Escolhia
Texto de Ana Maria Machado
Ilustrações de Mariana Massarani
Editora Objetiva, 2012

Um livro sobre princesas. Com rei, rainha, reino, princesa. Com enredo de contos de fadas, com obediências/desobediências, castigos/prêmios. E também com serviçais, torre, fila de príncipes pretendentes pela mão da princesa.
Mas é um livro sobre ser gente, sobre tornar-se pessoa. Sobre descobrir novos mundos – geográficos, físicos, espaciais. E novos mundos de conhecimento, cultura, pessoas.
É um livro sobre autonomia. Sobre poder escolher e não ser obrigado a dar a resposta que o outro deseja ouvir. Como disse a princesa à sua mãe: “Só quando a gente pode dizer não é que tem graça dizer sim.” (p.16)
Se fala de escolhas, é um livro sobre a vida. Sobre as possibilidades de ser feliz. Sobre a descoberta de si mesmo até a descoberta do outro. Se isso leva ao “felizes para sempre”? Impossível saber. Mas, com certeza, ao “felizes diariamente”, porque um e outro “se escolhem a cada dia” (p. 38).
Belo texto, com intertextualidade com contos maravilhosos clássicos e uma belíssima e criativa ilustração.

Livro dentro da gente


“Quando Lucia Pelãez era pequena, leu um romance escondida. Leu aos pedaços, noite após noite, ocultando o livro debaixo do travesseiro. Lucia tinha roubado o romance da biblioteca de cedro onde seu tio guardava os livros preferidos.
Muito caminhou Lucia, enquanto
passavam-se os anos. Na busca de fantasmas caminhou pelos rochedos sobre o rio Antióquia, e na busca de gente caminhou pelas ruas das cidades violentas.
Muito caminhou Lucia, e ao longo de seu caminhar ia sempre acompanhada pelos ecos daquelas vozes distantes que ela tinha escutado, com seus olhos, na infância. Lucia não tornou a ler aquele livro. Não o reconheceria mais. O livro cresceu tanto dentro dela que agora é outro, agora é dela.”

Eduardo Galeano, em "O livro dos abraços"